Zan-Gi

Naquela ocasião, havia no grande castelo de Rajagriha um grande rei chamado Ajatasatru [filho de Bimbisara e sua consorte real, Vaidehi], que era muito mal-intencionado, que tinha prazer em tirar vidas e que era plenamente realizado nas quatro más ações da boca [isto é, mentir, lisonjear, falar maliciosamente, e falar dubiamente]. A cobiça, a má-vontade e a ignorância norteavam a sua mente. Ele somente via o presente e não os dias a vir. Todas as pessoas más eram da sua companhia. Ele abandonou-se a mercê dos cinco desejos [fortuna, luxúria, comida e bebida, fama, e sono] e dos prazeres da vida. Como resultado, ele prejudicou o seu próprio pai inocente. Após ter prejudicado o seu pai, o arrependimento provocou-lhe um pensamento febril. Nenhum adorno, colares ou música podiam ajudá-lo. Com sua mente febril de arrependimento, surgiram erupções em todo o seu corpo. Essas exalavam podridão, mau-cheiro, e ninguém podia se aproximar dele. Então ele disse para si próprio: “Agora estou recebendo essa retribuição cármica nesta presente vida. Não passará muito tempo antes que as punições do inferno se abatam sobre mim”. Então a sua mãe, a Rainha Vaidehi, aplicou-lhe vários remédios. Mas as feridas somente aumentavam em número e não havia sinais de cura. O rei disse a sua mãe: “Essas feridas vieram da mente, e não dos quatro elementos. As pessoas podem arrogar-se de [serem capazes de] me curar, mas isso não pode ser”.

Naquela ocasião, havia um grande médico chamado Jivaka, que foi ao rei e disse: “Oh grande Rei! Você dorme bem ou não?”

“Oh Jivaka! Encontro-me seriamente doente. Cometi um pecado mortal contra o meu rei legítimo. Nenhum bom médico, nem o mais maravilhoso dos remédios, nem encantos ou o melhor dos cuidados pode curar-me. Por que não? Meu pai, o rei legítimo, governava o estado legalmente. Nada havia nele que alguém pudesse se queixar; e eu o matei sem razão. Sou como um peixe na terra. Que prazer posso ter? Sou como um gamo capturado numa armadilha e nada me satisfaz. Sou como um homem que sabe que sua vida está chegando a um fim em não mais que um dia; sou como um rei que se refugiou numa terra estrangeira; sou como um homem desenganado que está sofrendo de uma doença incurável; sou como um homem que quebrou as regras da moralidade e está agora condenado à sua punição. Certa vez, no passado, ouvi um homem sábio dizer: ‘Saiba que uma pessoa cuja ação não é pura no corpo, na boca e na mente; certamente cairá no inferno’. Estou assim agora. Como posso dormir pacificamente? Não há ninguém que possa me dar agora o remédio insuperável do Dharma e libertar-me da minha doença.”

Jivaka respondeu: “Bem falado, bem falado! Você pecou, mas você se arrepende e sente-se envergonhado. Oh grande Rei! O Buda-Honrado-pelo-Mundo diz: ‘Existem dois dharmas brancos que salvam os seres. Um é ‘Zan’ [sentir-se envergonhado], e o outro é ‘Gi’ [sentir-se envergonhado]. ‘Zan’ é não cometer pecado, e ‘Gi’ é não cometer pecado perante outros. ‘Zan’ é sentir-se envergonhado de si próprio, e ‘Gi’ é confessar para outros. ‘Zan’ é sentir-se envergonhado [culpado] perante os humanos, e ‘Gi’ é sentir-se envergonhado perante os céus. Isto é ‘Zan-Gi’ [arrependimento, remorso]. Alguém sem arrependimento não é humano. É um animal. Quando se tem arrependimento, respeita-se pai e mãe, mestres e anciãos. Quando se tem arrependimento, existem pai, mãe, irmão mais velho, irmão mais novo, filho mais velho e irmã mais nova’. Bem falado, oh grande Rei! Ouça por um momento! Eu ouvi o Buda dizer: ‘Dentre os sábios, existem dois tipos. Um é a pessoa que não faz maldades, e o outro é a pessoa que se arrepende após ter cometido a maldade. Dentre os ignorantes, existem novamente dois tipos. Um é aquele que faz maldades, e o outro é aquele que as esconde. Primeiro, alguém faz a maldade, mas depois a confessa e se arrepende completamente, e não volta a repeti-la. Isto é como no caso da água turva a qual, se a jóia [mani] do ‘Brilho-da-Lua’ for colocada lá, tornar-se-á límpida, devido ao poder maravilhoso da gema (preciosa). Ou é como quando as nuvens se dispersam e a lua se revela em todo seu esplendor. O mesmo se passa com o arrependimento de más ações que alguém tenha cometido’.

Excerto do Sutra do Nirvana, CAP. 24 – Sobre Ações Puras 4.

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Por muccamargo

Físico, Mestre em Tecnologia Nuclear USP/SP-Brasil, Consultor de Geoprocessamento, Estudioso do Budismo desde 1987.

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