“Então Shakradevanamindra se transformou num rakshasa [demônio devorador de carne] que era muito temeroso de ver. Ele desceu aos Himalayas. E ficou ali, não muito longe. Naquela ocasião, o rakshasa não tinha medo em sua mente; ele parecia corajoso, nada comparável a ele. Sua oratória estava em ordem, com sua voz clara. Ele falou metade de um gatha dos Budas pretéritos:
‘Todas as coisas mudam.
Esta é a lei do nascimento e da morte’.
Assim falando, ele postou-se diante da pessoa. Ele a olhou muito assustadoramente, e olhou tudo ao redor dela. A pessoa que estava praticando penitência ouviu essas [palavras] e ficou feliz. Foi como um mercador que, enquanto viajando num caminho difícil através da escuridão da noite e perdendo de vista seus companheiros, ficasse cheio de medo, mas quando se encontrou com seus camaradas novamente, sentiu uma alegria sem fim; ou foi como uma pessoa que há muito tivesse uma doença, sem encontrar um bom médico, um bom tratamento ou bom remédio, e que mais tarde encontrou tudo isso; ou foi como uma pessoa que caindo nas águas no mar, subitamente encontrasse um bote; ou como uma pessoa sedenta que encontrasse água; ou como uma pessoa que está sendo perseguida por um inimigo, e que subitamente escapa; ou como uma pessoa que há longo tempo encontra-se encarcerada numa prisão, e que subitamente obtém a liberdade; ou foi como um agricultor que encontra a chuva durante os dias de seca; ou como um viajante que retorna ao lar novamente, e aquelas pessoas em casa ficam radiantes. Oh bom homem! Eu, naquela ocasião, ouvi essa metade de um gatha (verso) e fiquei igualmente alegre. Eu imediatamente saltei do meu assento, levantei meus cabelos com minhas mãos, olhei ao meu redor e disse: ‘De quem foi aquele gatha que eu ouvi precisamente agora?’
Naquela ocasião, conforme olhei ao redor, não vi ninguém exceto um rakshasa. Eu disse: ‘Quem é que assim abre o portal da emancipação e assim troveja a voz de todos os Budas? Quem é que, em meio ao sono do nascimento e da morte, desperta sozinho e expressa essas palavras? Quem é que mostra aos seres – enfrentando o nascimento, a morte e o flagelo da fome – essa Via insuperável? Inumeráveis seres debatem-se no mar do nascimento e da morte. E quem é que se tornará um grande mestre marinheiro? Todos esses seres estão sempre fortemente acometidos pelas doenças dos ‘asvaras’. Quem é que é capaz de tornar-se o melhor dos médicos? Essa metade de um gatha me ensina, abre e desperta a minha mente. É como quando a meia-lua faz com que o lótus abra as suas pétalas’. Então, oh bom homem, eu via nada mais que um rakshasa. Também, pensei assim: ‘O rakshasa falou este gatha?’ Novamente eu duvidei: ‘Talvez ele não o tenha dito. Por que não? A aparência desse homem é verdadeiramente assustadora. Qualquer um que ouvisse esse gatha acabaria com todos os temores e com a fealdade. Como poderia um homem como este, que parece tão feio, proferir um gatha como este? Um lótus não pode surgir do fogo; não pode haver água fria onde a luz do sol incide’.
Oh bom homem! Então eu disse para mim mesmo: ‘Agora sou um ignorante. Esse rakshasa pode ter visto todos os Budas no passado. Vendo-os, ele pode ter tido uma chance de ouvir essa metade de um gatha. Eu o indagarei’. Dirigindo-me para onde ele se encontrava, eu disse: ‘Bem oh grande! Onde você obteve essa metade de um gatha do Destemido (Buda) do passado? Oh grande! Onde você obteve essa metade de um cintamani [jóia da satisfação dos desejos] de um gatha? Oh grande! Essa metade de um gatha é o caminho correto de todos os Budas-Honrados-pelo-Mundo do passado, do presente, e do futuro. Os inumeráveis seres do mundo estão sempre obscurecidos por todas as ações errôneas, e ao longo de toda a vida eles permanecem em meio aos ensinamentos dos tirthikas e não têm a chance de ouvir as palavras supramundanas ditas pelo Herói do Mundo [Buda], que é possuidor dos dez poderes’.
Oh bom homem! Quando eu assim indaguei, a resposta veio: ‘Oh grande Brâmane! Não pergunte a mim o significado disto. Por que não? Eu não como nada há dias. Eu já olhei tudo ao redor, mas não posso encontrar algo para comer. Devido à sede, à fome e à preocupação, minha mente está confusa e minhas palavras não vêm na ordem. Minha mente em si não sabe [o que é o que]. Voei através dos céus. Fui para o Uttarakuru, para o céu, e para todos os outros lugares, mas não obtive comida em nenhum lugar. Portanto, falo assim’.
Oh bom homem! Eu então disse ao rakshasa: ‘Oh grande! Se você me falar sobre esse gatha, serei seu discípulo até o fim da minha vida. Oh grande! O (gatha) que você falou não estava inteiro e, portanto, o significado não estava completo. Por que você não quer falar? Ora, existe um fim para toda a riqueza, mas não existe um fim para o dana [doação] do Dharma. A doação do Dharma não conhece um fim. O benefício auferido é grande. Agora que eu ouvi essa metade do gatha, minha mente está surpresa, e eu também tenho dúvida. Ora, facilite meu pensamento! Se você completar esse gatha, serei seu discípulo até o fim dos meus dias’.
O rakshasa respondeu: ‘Eu penetrei profundamente a Sabedoria. Você se preocupa apenas consigo mesmo e não alcança o significado. Eu agora me encontro oprimido pela fome. Não posso continuar a falar’.
Eu indaguei: ‘O que você come?’
O rakshasa respondeu: ‘Não pergunte. Se eu disser, as pessoas ficarão assustadas’.
Eu ainda disse: ‘Eu vivo só, não há ninguém mais aqui. Agora, não estou com medo de você. Por que você não dirá?’
O rakshasa disse: ‘O que eu como é carne humana fresca; o que eu bebo é sangue quente dos humanos. É um infeliz destino o meu, que tenho que sustentar a minha vida dessa maneira. Olho em toda a volta, mas não posso obter nenhuma dessas coisas. Existem muitos homens no mundo. Mas todos possuem virtudes; todos são protegidos pelos céus. Ademais, não tenho força e não posso matar’.
Oh bom homem! Eu ainda disse: ‘Diga-me o significado completo do gatha. Após ouvi-lo, lhe oferecerei meu corpo. Oh grande! Eu posso morrer, mas esse meu corpo não é de utilidade para mim. Ele poderia ser devorado por um tigre, lobo, coruja ou águia, sem que meu ser fosse abençoado com uma quantidade de cabelo ao meu lado. Eu agora estou na intenção da Iluminação Insuperável. Descartarei um corpo que não é duro o suficiente, e pretendo trocá-lo por um (corpo) indestrutível’.
O rakshasa respondeu: ‘Quem acreditaria no que você diz? Abandonar o corpo amado para o benefício das oito palavras [isto é, as 11 palavras finais do poema em português]?’
Oh bom homem! Eu respondi: ‘Você realmente é ignorante. Coloque-se no meu lugar. Seria como dar um vaso de cerâmica em troca de um vaso contendo as sete jóias. O mesmo se passa comigo. Descartarei o meu corpo que não é forte o bastante, no sentido de obter um Corpo Adamantino. Você diz: ‘Como posso acreditar em você’? Eu tenho testemunhas tais como o Grande Brahma, o Shakrodevanamindra, e os quatro guardiões da terra, que testemunharão tudo para mim. Também, todos os Bodhisattvas que desejam beneficiar incontáveis seres, que estudam o Mahayana e que são realizados nos seis paramitas atestarão. E ainda existem todos os Budas-Honrados-pelo-Mundo das dez direções que desejam beneficiar todos os seres. Eles, também, testemunharão que eu de fato deixarei de lado o meu corpo para o benefício daquelas oito palavras’.
O rakshasa ainda disse: ‘Se você deseja jogar fora o seu corpo assim, então ouça bem, ouça bem! Agora recitarei a metade remanescente do gatha para o seu benefício’.
Oh bom homem! Então, ouvindo suas palavras, tirei a roupa de pele de cervo que eu vestia e joguei-a no chão para o rakshasa pregar (o verso faltante), e disse: ‘Oh Honrado! Por favor, sente-se nisto. Juntarei minhas mãos e me prostrarei no chão antes que o diga’.
O rakshasa disse:
‘Quando se acaba com o nascimento e morte,
quietude é felicidade’.
Tendo dito isto, o rakshasa ainda disse: ‘Oh Bodhisattva-Mahasattva! Você agora obteve a significado completo do gatha e deve estar satisfeito. Se você deseja beneficiar todos os seres, dê-me seu corpo agora!’
Oh bom homem! Naquela ocasião, eu ponderei muito sobre o significado [do gatha]. Então, escrevi este gatha sobre pedras, paredes, árvores, e ao longo do caminho. Então, vesti minha roupa. Pelo fato de que, possivelmente, após a minha morte meu corpo poderia ser exposto [a alguém]. Escalei uma árvore alta.
Então o deus árvore disse: ‘Oh você! O que você intenciona fazer?’
Oh bom homem! Eu respondi: ‘Eu agora descartarei o meu corpo, a fim de pagar o valor que obtive do gatha’.
O deus árvore indagou: ‘Que benefício o gatha confere?’
Eu respondi: ‘Esse gatha é aquele que os Budas do passado, do presente e do futuro tiveram para a abertura da Doutrina do Todo-Vazio. Dei meu corpo por isto. Não é por lucro, fama ou fortuna; nem para a felicidade do Chakravartin, dos quatro guardiões da terra, do Grande Brahma, ou de humanos e seres celestiais. Eu o descartei para o benefício de todos os seres’.
Oh bom homem! Eu também jurei para mim mesmo: ‘Que todas as pessoas miseráveis venham e vejam como eu abandono esse corpo. Se existe uma pessoa que dê pouco e espere por muito, que essa pessoa veja como eu, meramente por este gatha, jogo fora meu corpo, da mesma forma como se uma pessoa jogasse fora capim ou madeira’.
Conforme eu disse isso, arremessei meu corpo da árvore ao solo. Ainda não havia chegado ao chão quando várias vozes ressoaram no ar. As vozes chegaram tão longe quanto o Céu Akanistha. Então o rakshasa apresentou a sua forma original como Shakra, segurou-me no meio do ar, e colocou-me sobre o chão. Então, Shakrodevanamindra, todos os devas e o Grande Brahma caíram ao chão. Eles tocaram os meus pés, levantaram-me, e disseram: ‘Bem feito, bem feito! Muito bem, muito bem! Este é realmente um Bodhisattva que beneficia inumeráveis seres e que, na escuridão das trevas, deseja acender uma grande tocha. Como eu amo o Grande Dharma do Tathagata, belamente pondero e zelo. Por favor, dê ouvidos a como me arrependo dos meus pecados. Seguramente, nos dias a vir, você alcançará a Iluminação Insuperável. Por favor, condescenda em socorrer-me’.
Então, Shakrodevanamindra e os devas tocaram meus pés. E, então, desapareceram e não mais foram vistos. Oh bom homem! Desde que descartei meu corpo em tempos passados pelo benefício de um gatha, em conseqüência fiquei apto a esperar atingir a Iluminação Insuperável após doze kalpas, antes de Maitreya. Oh bom homem! Eu alcancei tais inumeráveis virtudes. Tudo surge a partir dos oferecimentos feitos ao Dharma Maravilhoso do Tathagata.
Oh bom homem! É o mesmo com você. Se você aspira ao insuperável Bodhichitta [Mente/Intenção da Iluminação], isto colocará você acima de Bodhisattvas tão inumeráveis quanto às areias de inumeráveis, ilimitados Rios Ganges. Isto é o que denotamos quando dizemos que um Bodhisattva reside nos ensinamentos do Mahayana Mahaparinirvana e pratica a Via Sagrada.”
Excerto do Sutra do Nirvana, CAP. 20 – Sobre Ações Sagradas 2.
