O Rei de Kalinga

Por que o paramita da paciência é dito ser destituído da paciência? “Subhuti, é assim como quando Eu, no terreno causal, tive meu corpo desmembrado pelo Rei de Kalinga”. Há muito tempo numa vida passada, o Buda Shakyamuni fora um jovem cultivador (da Via) praticando nas montanhas acerca de trinta milhas da cidade-capital onde o Rei de Kalinga governava. Certo dia, o rei decidiu ir à caça e convocou um grupo de soldados, ministros e autoridades para acompanhá-lo. Para completar o grupo, ele convocou as mais belas concubinas do palácio. Na verdade, ele não suportaria apartar-se de suas mulheres mesmo durante uma viagem de caça. Ele procurava um passatempo mais agradável.

A área de caça na montanha era muito ampla, e o Rei de Kalinga imediatamente saiu em perseguição a um grande gamo, deixando as tímidas mulheres para trás para se divertirem. Enquanto as mulheres passeavam ao redor da montanha, aconteceu de encontrarem um jovem monge que tinha apenas dezoito ou dezenove anos e muito bonito, a despeito do fato de que seu cabelo havia crescido e suas vestes estavam esfarrapadas. Quando elas o avistaram pela primeira vez, pensaram que ele era algum tipo de criatura estranha ou uma besta devoradora de pessoas, e entraram em pânico. “Olha”, disseram em sobressalto, agarrando-se umas às outras, “há um animal selvagem que parece um ser humano!”

“Eu não sou um animal selvagem, sou um cultivador da Via”, o jovem lhes assegurou.

Quando as concubinas ouviram que a criatura podia conversar, sua curiosidade foi despertada, e elas se aproximaram para falar com ele. “O que significa ‘cultivar a Via’?” elas indagaram, pois elas nunca estiveram fora dos limites do palácio, e dessa forma nunca tinham ouvido falar de tal coisa. O jovem cultivador pregou o dharma para elas. Vendo o que nunca haviam visto antes, e ouvindo o que nunca haviam ouvido antes, ficaram fascinadas e logo esqueceram de tudo – mesmo quem (eram) e onde estavam.

Neste ínterim o Rei de Kalinga retornou de sua expedição e descobriu que suas concubinas do palácio haviam se afastado. Ele saiu à busca delas. Eventualmente ele as avistou reunidas em torno daquele homem de aparência estranha. O rei, interessado em descobrir quem era o homem e o que ele estava fazendo com as concubinas, rastejou silenciosamente em direção a eles como um espião em uma missão secreta. Quando chegou perto ele parou, ouviu o jovem cultivador a pregar o dharma, e percebeu que as concubinas estavam tão extasiadas que nem notaram a chegada do seu rei. Então o Rei de Kalinga limpou a garganta e desafiou o jovem: “O que você está fazendo aqui”? “Estou cultivando a Via”, respondeu o monge.

“Você atingiu a fruição do Arhatship em sua cultivação?”, indagou o rei.

“Não”, disse o jovem cultivador, “Não me certifiquei para o Arhatship”.

“Você atingiu o terceiro estágio?”, continuou o rei.

“Não”, disse o monge, “Não me certifiquei para o terceiro fruto.”

“Eu ouvi dizer que há pessoas que vivem nas montanhas e que ao comer um certo tipo de fruto elas atingem a imortalidade, mas ainda não estão livres da cobiça e do desejo. Elas ainda têm a luxúria em seus corações. Você é tão jovem e ainda não se certificou para qualquer dos frutos da Via. Você dá origem a pensamentos de luxúria?”,  indagou o rei.

“Não os erradiquei”, respondeu o monge.

Com aquela resposta o Rei de Kalinga ficou enfurecido. “Se você não erradicou a luxúria, então quando você vê minhas … essas mulheres … como você as vê … como você pode ser tolerante com a luxúria que surge em seu coração?”, ele desafiou.

“Embora eu não tenha erradicado a luxúria, não dou origem a pensamentos lascivos. Em minha cultivação eu contemplo os nove tipos de impurezas.”

“Ah”, cuspiu para trás o rei: “você cultiva a contemplação das impurezas. Você é um enganador! Que provas eu tenho de que você não cobiça as minhas mulheres? Que provas há que você pode suportar seus pensamentos de luxúria?”

“Eu os suporto”, respondeu o monge. “Posso suportar qualquer coisa”.

“Oh você pode, será que pode? Bem, então veremos. Primeiro eu cortarei sua orelha”. O rei desembainhou a sua espada reluzente, pegou a orelha do monge, e cortou-a. Mas, naquele momento, os ministros e oficiais haviam se juntado ao redor para ver o que havia causado tanta comoção. Eles olharam para o jovem cultivador que parecia totalmente imóvel e sem dor, e pediram ao rei: “Grande Rei, não volte sua espada para ele. Ele é um grande mestre. Ele deve ser um Bodhisattva. Você não deve voltar a sua espada para ele.”

“Como vocês sabem que ele é um Bodhisattva? Como sabem?”, indagou-lhes o rei, eriçado de ciúme.

“Olhe para ele”, disseram os oficiais, “você cortou-lhe a orelha e ele nada fez. Ele nem sequer corou. Ele apenas permaneceu sentado como se nada houvesse acontecido.”

“Como sabem que ele se sente como se nada houvesse acontecido? Aposto que em seu coração ele me odeia. Vou tentá-lo novamente”. Ele posicionou a sua espada e esmeradamente cortou o nariz do monge. “Você está com raiva?”

“Não estou com raiva”, respondeu o monge.

“Não está? É muito provável que você seja um mentiroso tanto quanto é um enganador. Talvez você possa enganar essas mulheres, mas não a mim. Cortarei sua mão e verei o que você faz. Pode suportá-lo?” Sua voz tremia quando ele baixou a espada novamente.

“É tudo o mesmo para mim”, disse o monge.

“Tá certo, se é tudo o mesmo, então cortarei a sua outra mão”, o que ele fez dizendo com uma raiva mal controlada: “ainda não sente raiva? Ainda não está enfurecido?”

“Não, não estou enfurecido”, disse o monge.

“Eu não acredito em você. Ninguém poderia ter ambas as mãos cortadas e não sentir raiva. Você certamente é uma aberração”, ele disse conforme cortava uma perna do monge. “Ainda não sente raiva?”

O rei cortou fora a outra perna. “Raiva?”, ele quase gritou mais uma vez.

O monge mutilado continuou sentado como antes, embora agora ambas as orelhas, nariz, ambas as mãos e pernas estivessem totalmente separadas do seu corpo. “Não estou com raiva”, disse ele novamente.

Mas então, os Quatro Grandes Reis Celestes ficaram com raiva e, amaldiçoando o rei, fizeram cair uma chuva de grandes pedras de granizo. O granizo bateu tão violentamente que uma parte da montanha próxima à reunião caiu e deslizou rugindo pelas encostas. O rei gelou de medo ao perceber o seu engano. Ele ajoelhou-se diante do monge sem orelhas, nariz, mãos e pernas, e implorou por perdão. “Eu estava errado, eu estava errado”, gritou aterrorizado. “O Céu está me punindo. Não fique raivoso, por favor, não fique raivoso.”

“Não ficarei raivoso”, disse o monge.

“Isto não é verdade”, gritou o rei em pânico. “Se você não está com raiva, por que é que o céu está me punindo?” Ele ainda pensava que o monge havia chamado uma maldição sobre ele.

“Eu posso provar que não tenho raiva”, disse o monge. “Se eu tiver raiva, então as extremidades do meu corpo não se restaurarão. Mas seu eu não tiver me tornado raivoso, então minhas mãos, pernas, orelhas e nariz se restaurarão da maneira que eram antes”. Tão logo havia terminado de falar, suas pernas, mãos, orelhas e nariz juntaram-se perfeitamente ao tronco do seu corpo. Quando seu corpo estava inteiro novamente o monge fez uma promessa solene ao rei: “Ao atingir o Estado de Buda, o conduzirei à travessia primeiro.”

Mais tarde, quando o jovem cultivador renasceu como o jovem príncipe que realizou a Via e tornou-se o Buda Shakyamuni, ele primeiramente foi ao Parque do Gamo para levar à travessia o antigo Rei de Kalinga, o Venerável Ajnatakaundinya.

Após ouvir esse relato, algumas pessoas poderiam dizer: “Encontrarei um monge que pratique a paciência nas montanhas e cortarei suas orelhas, nariz, mãos e pernas. Então ele fará o voto de levar-me à travessia quando ele atingir o Estado de Buda”. Esse plano seria perfeito se você estivesse seguro de encontrar um cultivador com a compaixão, e um coração paciente como o do Buda Shakyamuni. Todavia, se o cultivador desse origem a um único pensamento de raiva enquanto você o cortasse, então você cairia no inferno dos incessantes sofrimentos. Assim, é melhor você pensar duas vezes antes de tentar aquele método. Além disso, você não é um rei. Se você fosse um rei, você poderia consegui-lo.

O Buda Shakyamuni referiu-se a seu encontro com o Rei de Kalinga naquele ponto, no sentido de relembrar Subhuti de que ele compreendera o paramita da paciência. “Quando o Rei de Kalinga desmembrou o meu corpo, Eu não tinha a marca do eu, nem marca dos outros, nem a marca dos seres viventes, e nem a marca de uma vida.”

Sutra Diamante – Capítulo 14 – Extinção Tranquila Isenta de Marcas.

Original

Por muccamargo

Físico, Mestre em Tecnologia Nuclear USP/SP-Brasil, Consultor de Geoprocessamento, Estudioso do Budismo desde 1987.

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