O Buda começou a imaginar como ele propagaria o conhecimento. Ele disse para si:
“Descobri uma profunda verdade. Foi difícil perceber; será difícil entender; somente o sábio a compreenderá. Num mundo conturbado, onde humanos levam uma vida agitada, todavia gostam de viver num mundo cheio de confusão. Como então poderão entender a cadeia das causas e efeitos? Como poderão entender a lei? Eles nunca serão capazes de reprimir seus desejos; nunca romperão com os prazeres mundanos; nunca adentrarão o Nirvana. Se eu pregar a doutrina, não serei compreendido. Talvez ninguém sequer me ouça. Qual é o objetivo de revelar para os humanos a verdade que tive que lutar para conquistar? A verdade permanece oculta para aqueles dominados pelo desejo e pelo ódio. A verdade é difícil de encontrar; permanece sempre como um mistério. A mente vulgar nunca a captará. Nunca conhecerá a verdade aquele cuja mente está perdida na escuridão, e que está presa aos desejos mundanos.”
E, assim, o Bem-Aventurado não estava inclinado a pregar a doutrina.

Então Brahma, pela virtude de sua suprema inteligência, sabia das dúvidas que afligiam o Bem-Aventurado. Ficou assustado. “O mundo estará perdido”, disse para si, “o mundo estará desfeito, se o Perfeito, o Sagrado, o Buda, ficar indiferente agora, se ele não for entre os humanos para pregar a doutrina e propagar a sabedoria.”
E ele deixou o céu. Ele levou menos tempo para chegar à terra do que leva um homem forte para dobrar ou esticar seu braço, e apareceu diante do Bem-Aventurado. Para demonstrar a sua profunda reverência, ele descobriu um ombro, então ajoelhou-se, juntou as palmas das mãos erguidas para o Bem-Aventurado, e disse:
“Digne-se a ensinar o conhecimento, oh Mestre, condescenda a ensinar o conhecimento, oh Bem-Aventurado. Há humanos de grande pureza no mundo, pessoas a quem nenhuma impureza contaminou, mas, se não forem instruídos na sabedoria, como encontrarão a salvação? Tais pessoas devem ser salvas; oh, salve-os! Eles ouvirão a você; serão seus discípulos.”
Assim falou Brahma. O Bem-Aventurado permaneceu em silêncio. Brahma continuou:
“Até agora uma lei maligna prevaleceu no mundo. Ela levou os humanos ao pecado. Cabe a você destruí-la. Oh Homem de Sabedoria, abra para nós os portões da eternidade; diga-nos o que você encontrou, oh Redentor! Você é aquele que subiu a montanha, encontra-se no seu cume rochoso, e contempla a humanidade de longe. Tenha piedade, oh Redentor; pense nas pessoas infelizes que sofrem a angústia do nascimento e da velhice. Vá, herói conquistador, vá! Viaje através do mundo, seja a luz e o guia. Fale, ensine; haverá muitos para entender a sua palavra.”
E o Bem-Aventurado respondeu:
“Profunda é a lei que estabeleci; é sutil e difícil de compreender; está para além da razão comum. O mundo irá zombar dela; somente alguns poucos homens sábios talvez alcancem o significado e decidam aceitá-la. Se eu me propuser, se eu falar e não for compreendido, corro o risco de uma derrota vergonhosa. Permanecerei aqui, Brahma; os humanos são o joguete da ignorância.”
Mas Brahma falou novamente:
“Você atingiu a sublime sabedoria; os raios da sua luz chegam até o espaço, mesmo assim você está indiferente, oh Sol! Não, tal conduta é indigna de você; seu silêncio é repreensível; você deve falar. Levante-se! Bata os tambores, soe o gongo! Deixe a lei fulgurar como uma tocha acesa, ou como uma chuva refrescante, deixe-a cair sobre a terra ressequida. Liberte aqueles atormentados pela maldade; leve paz àqueles consumidos pelo fogo do vício! Você, que é como uma estrela em meio aos homens, apenas você pode destruir o nascimento e a morte. Veja, prostro-me aos seus pés e lhe imploro, em nome de todos os Deuses!”
Então o Bem-Aventurado pensou:

“Em meio aos lótus azuis e brancos que florescem num lago, há alguns que ficam sob a água, outros que sobem à superfície, e ainda outros que crescem tanto que suas pétalas sequer são molhadas. E no mundo eu vejo homens bons e homens maus; alguns têm mentes aguçadas e outros são estúpidos; alguns são nobres, outros ignóbeis; alguns me compreenderão, outros não; mas sentirei piedade de todos eles. Considerarei o lótus que se abre sob a água tão bom quanto o lótus que exibe sua grande beleza.”
E ele disse a Brahma:
“Que os portões da eternidade sejam abertos para todos! Que os que têm ouvidos ouçam a palavra e creiam! Eu estava pensando no esforço que se reserva a mim, e temendo o cansaço que viria para nada, mas a minha piedade sobrepuja essas considerações. Levantar-me-ei, oh Brahma, e pregarei a lei para todas as criaturas.”
A vida do Buda, tr. para o francês por A. Ferdinand Herold [1922], tr. para o inglês por Paul C. Blum [1927], rev. por Bruno Hare [2007], tr. para português brasileiro por Marcos U. C. Camargo [2011].
Fonte: Sacred-Texts em http://www.sacred-texts.com/bud/lob/index.htm